terça-feira, 29 de novembro de 2011

Boneca de trapos




A boneca de trapos ama as mãos que a manipulam.
Mesmo quando lhe arrancam o coração de algodão
e lhe revolvem as entranhas de farrapos,
mantém o sorriso rasgado,
desenhado a tinta tosca num rosto de serapilheira.

A boneca de trapos não tem mais ninguém para amar
senão quem a faz sofrer.
E quando as mãos cruéis
a lançam em fúria na fogueira,
aquele sorriso é o último a arder.

No voo esparso das cinzas que se erguem do lar,
cumpre assim o seu último ritual.
Levada pelo vento das sílfides
para arrebanhar nuvens e céu,
a boneca de trapos é imortal.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Genesis



O diabo zangou-se com Deus,
quis engolir a luz,
mas engasgou-se e cuspiu-a em pedaços.

Nasceram as estrelas.

(Ou seriam os teus olhos?)

A divisão das almas




Em quantas partes se divide a alma?

Dizem uns sábios que antes de nascer
celebrámos um pacto com Deus
e que a alma nos foi partida
em dois eus pelos mundos dividida,
sem uma da outra saber.

Guardam os meus lábios a marca do dedo
do anjo que me impôs silêncio e
a alma em duas me talhou.
Mas o coração lembrou
e descobriu a traição.

É por isso que vagueio à aventura na vida
em busca do que é meu,
a parte que me foi tirada e que me procura.
Diz-me agora, anjo ateu:
E o coração, tem divisão?

Pianos




Vinte dedos.
Dois pianos.
Feitos de pele e desejo.
Harmonia.
Duas bocas.
Um beijo e
a mesma melodia.

Em ti vou aprender solfejo,
piano que quero dedilhar.
Um dia...
Ah, quem sabe, um dia,
aprenderás a amar.

Luto




Não há maior luto
que a ausência de quem
se afastou em vida
mas teima em ficar no coração.

Incerteza




Tua pele, madrugada.
Minha pele, crepúsculo.

Teu corpo o princípio dum final derradeiro.

E eu somente o fim dum incerto começo.